segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Sem sofrimento não há crítica social - Vladimir Safatle


Reproduzo abaixo, na íntegra, um excelente artigo do Vladimir Safatle, professor no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), publicado na revista Carta Capital do dia 03 de Outubro de 2012. O artigo ainda não está disponível no site da revista. Encontrei-o aqui.

Um dos fenômenos mais relevantes da última década foi uma lenta mutação em nossa maneira de compreender a natureza do sofrimento psíquico. Tal questão não é um problema que deveria ocupar apenas psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. A maneira como compreendemos o que vem a ser o sofrimento psíquico é um setor fundamental a respeito da imagem que temos de nós mesmos e de nossos ideais de autorrealização.

A distinção entre normalidade e patologia, no que se refere à vida psíquica, não é o simples fruto de variações quantitativas, de déficits e excessos relativos a constantes orgânicas. Valores fundamentais na definição tradicional da normalidade, como harmonia e equilíbrio, nascem em campos exteriores à clínica. Não seria difícil mostrar como a genealogia da "harmonia" como valor médico encontra sua origem no campo da estética, da mesma forma que o "equilíbrio" encontra sua origem na política. Essa é apenas uma maneira de lembrar como os valores que compõem o horizonte da saúde são, em larga medida, dependente de valores que a clínica toma de empréstimo dos campos da cultura. O homem é um animal que sofre por não ser capaz de realizar valores que ele compreende, graças a uma experiência sócio-histórica de larga escala, como fundamentais para uma vida bem-sucedida.

Lembrar tais considerações aparentemente triviais é fundamental para começarmos a compreender as consequências de certa guinada organicista que submeteu as discussões sobre sofrimento psíquico, ao menos desde o aparecimento do manual de psiquiatria DSM-III no fim dos anos 1970. A partir daí, virou um lugar-comum afirmar que havíamos entrado na era do declínio das psicoterapias, graças, principalmente, ao advento de gerações de antidepressivos, psicotrópicos e neurolépticos que, enfim, dariam conta dos distúrbios e transtornos que afetam grandes camadas da população. For sua vez, a descoberta de certos paralelismos frutíferos entre estados mentais e estados cerebrais pareceu fascinar pesquisadores encantados com a possibilidade de localizar sentimentos e estados humorais em redes neuronais.



Aos poucos, vimos o estabelecimento de um senso comum que tendia a rejeitar explicações etiológicas do sofrimento psíquico que colocavam em relevo os impasses dos conflitos no interior da esfera familiar, as contradições nos processos de constituição social de identidades, em suma, as possibilidades de organização da experiência de si tal como permitidas pela natureza de nossos vínculos sociais. Tudo isso parecia como aquelas grandes meta-narrativas sobre desenvolvimento histórico que aprendêramos a recusar. Talvez não seja por acaso que a propalada crise da psicoterapia mais influente do século XX, a saber, a psicanálise tenha sido acompanhada da crise da "metanarrativa" mais influente do século XX, a saber, o marxismo. Nos dois casos, discursos profundamente críticos a respeito dos limites e das modalidades de sofrimento produzidas por nossas formas de vida eram jogados no fundo do baú da história.

Que o discurso do ocaso das psicoterapias e da ascensão da era dos antidepressivos tenha sido enunciado, de maneira mais peremptória, quando nossas sociedades liberais quiseram impor a ideia de que eles tinham vindo para ficar e que não havia muito mais a esperar, eis algo que não deve ser visto como uma mera coincidência. Quando Michel Foucault cunhou o belo termo "biopolítica", ele procurava salientar a maneira como decisões referentes à administração da vida e dos corpos, decisões eminentemente internas ao saber médico, não são exteriores à expectativa de valores políticos que queremos implementar. Por exemplo, se em certo momento do desenvolvimento da psiquiatria, a força terapêutica da relação entre médico e paciente foi levada em conta, isso não foi sem relações com noções de autonomia e subjetividade moral que apareceram como valores políticos fundamentais.



Devemos lembrar esses fatos, porque é bem provável que vejamos nos próximos anos um retorno crescente pelo interesse em psicoterapias. Freud, à sua época, não cansava de ouvir pacientes que simplesmente pediam para ser ouvidos, como se precisassem, por meio do redirecionamento lento de suas falas, construir espaços de vinculação de suas modalidades de sofrimento psíquico à singularidade de suas posições subjetivas. Que atualmente boa parte de nossos pacientes volte a reclamar do fato de não ser ouvida e de sair de consultórios com uma receita de medicamentos à base de Fluoxetina em tempo recorde, eis um sintoma social que indica exigências de novas abordagens a respeito do sofrimento psíquico. 

Vivemos em um momento de refluxo da euforia em relação à potência de cura de intervenções medicamentosas. Dizia-se que práticas psicoterápicas eram caras, longas e de resultados duvidosos. Engraçado como poucos lembravam que tratamentos com medicamentos também são caros, profundamente longos, e seus reais resultados poderiam ser mais bem avaliados se a indústria farmacêutica parasse de tentar influenciar resultados de pesquisa e retardar a divulgação de resultados desfavoráveis. 

Valeria dizer que tal refluxo talvez esteja silenciosamente ligado a uma ideia importante do psicanalista Jacques Lacan, a saber, de que os sintomas são aquilo que muitos têm de mais real. O sofrimento psíquico nunca foi simplesmente algo que deve ser eliminado, como eliminamos o vírus de uma doença orgânica. Na verdade, ele é, muitas vezes, a maneira desesperada que encontramos para dizer a nós mesmos que a estrutura de nossa vida não dá conta de experiências que, no fundo, gostaríamos de integrar. Sem sofrimento não há crítica, pois é a experiência do sofrimento que nos mostra o caráter arruinado daquilo que deve ser criticado. Nesse sentido, talvez devamos apreender como uma lição fundamental do século XX: não há crítica social possível sem compreendermos como o nosso corpo, como os impasses de nossos desejos falam aquilo que lutamos com todas as forças para não ouvir. Eis um bom caminho para o nosso futuro.


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