segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O que significa dizer que algo "faz bem para o cérebro"?

Pesquisando no Google a expressão "faz bem para o cérebro" é possível encontrar as seguintes coisas que "fariam bem" a este importante órgão do corpo humano: caminhar na natureza, ler e escrever no papel, nostalgia, mau humor, chocolate, soja, pilotar moto, ovo, dar boas risadas, leite, azeite, chá de hibisco, video de gatos, dormir de lado, estudar música, malhar, jogar video game, cerveja, Enya, chá verde, jogar Tetris, pensar em sexo, xadrez, ser bilingue, maconha, sexo antes do estresse, etc, etc. Eu poderia continuar ad infinitum, mas uma pergunta se faz necessária diante de todos esses exemplos: o que significa, afinal, dizer que algo "faz bem ao cérebro"? Em geral, as reportagens e textos que se utilizam de tal expressão, se referem a supostos estudos e pesquisas que apontariam para os benefícios de tais ações ou substâncias para a concentração ou para a memória das pessoas. No entanto, embora estudos e pesquisas em geral sejam apontados como fontes de tais afirmações, normalmente nenhum estudo ou pesquisa específico - e muito menos a fonte ou o link destas pesquisas - é indicado, o que nos impossibilita de averiguar se o que eles dizem a respeito da(s) pesquisa(s) coincide com o que os próprios pesquisadores afirmam (em geral há uma enorme discrepância entre o que jornalistas e cientistas dizem - e especialmente em como dizem). E isto só reforça minha impressão de que tais reportagens ou textos tem como função primordial não divulgar os resultados de um estudo realizado por cientistas mas reforçar coisas que já sabemos que fazem bem, como fazer atividades físicas e se alimentar de forma equilibrada, ou então fazer o leitor se sentir momentaneamente satisfeito ou menos culpado por comer chocolate, acordar mau humorado ou passar horas jogando videogame. 

Dizer, por exemplo, que caminhar faz "bem ao cérebro" significa, em geral, que caminhar promove mudanças no cérebro. E eu não teria como duvidar disso, afinal, seguindo a noção de neuroplasticidade, acredito - como os neurocientistas contemporâneos - que o cérebro é constantemente modificado em nossa relação com o mundo (e digo "nossa" porque cérebros não se relacionam sozinhos com o mundo: eles precisam de um corpo para isso). Isto significa, por sua vez, que ficar sentado no sofá comendo M&Ms e assistindo séries também modifica o nosso cérebro. Aliás, tudo o que fazemos (e pensamos e sentimos) modifica o nosso cérebro - não só aquilo que "faz bem". Neste sentido, dizer que caminhar causa modificações no cérebro não traz qualquer informação de fato relevante. Outra coisa, no entanto, é apontar o que de fato se modifica no cérebro quando caminhamos ou quando fazemos qualquer outra coisa - e isto muitas vezes não é apontado. Peguemos, como exemplo, esta reportagem da revista Galileu que afirma que um estudo feito por um aluno de graduação da Universidade de Stanford teria mostrado que "caminhar na natureza faz bem ao cérebro". Neste estudo (que o artigo não indica, mas que pode ser lido na íntegra aqui), os pesquisadores dividiram 38 pessoas em dois grupos: um caminhou 90 minutos por áreas silenciosas e arborizadas do campus de Stanford e o outro caminhou também por 90 minutos pelo agitado centro da cidade. Após tal caminhada, todos responderam a um questionário que avaliava o nível de ruminação dos participantes, ou seja, a quantidade de pensamentos repetitivos focados em aspectos negativos do self. Além disso, os participantes tiveram a atividade cerebral avaliada e mensurada por um equipamento de tomografia. A conclusão dos pesquisadores, segundo a reportagem, foi: aqueles que andaram no centro ficaram mais agitados, com bastante fluxo de sangue no cortex pré-frontal; já os participantes que passearam pelo caminho arborizado teriam mostrado mais positividade em seus questionários e teriam menos sangue circulando no cortex pré-frontal. Por outro lado, a conclusão segundo os próprios pesquisadores foi de que os participantes que caminharam por um ambiente natural "relataram níveis mais baixos de ruminação e mostraram redução da atividade neural em uma área do cérebro associada ao risco para a doença mental" (repito: associada ao risco) em comparação com aqueles que caminharam em um ambiente urbano. Isto poderia confirmar a hipótese dos pesquisadores de que "ambientes naturais podem conferir benefícios psicológicos para os seres humanos".


Vale ressaltar que em nenhum momento do artigo os pesquisadores apontam que ambientes naturais fazem bem ou podem fazer bem para o cérebro, mas para os seres humanos em geral. E porque eles dizem desta forma? O motivo é bastante simples. O cérebro, sendo um músculo, não tem a capacidade de sentir ou de estar bem ou mal. Quem possui tal capacidade somos nós (pessoas/organismos como um todo) e não nosso cérebro - como já apontei, de certa forma, em um post anterior. Portanto, da próxima vez que ler manchetes como essa, ignore a expressão "para o cérebro" e concentre-se em "faz bem". E tente também ignorar o absurdo que são algumas pesquisas - ou pelo menos a divulgação delas - que só provam aquilo que já sabemos. Ler faz bem? Nossa! Dormir também! Que coisa! Os psicólogos Sally Satel e Scott Lilienfeld, no livro Brainwhashed chamam tais expressões de "neuroredundâncias" por simplesmente reforçarem aquilo que já sabemos - só que com uma roupagem neurocientífica. São "mais do mesmo": parecem dizer muito mas não dizem nada - ou, pelo menos, nada novo. Por outro lado, dizer que ouvir Enya e jogar Tetris fazem bem ao cérebro podem até parecer informações novas e interessantes; no entanto, mesmo tais notícias acrescentam muito pouco ao leitor. Isto porque algumas perguntas básicas raramente são respondidas: como foi feito o estudo que embasa esta afirmação? quantas pessoas participaram? qual foi a metodologia? Sem responder tais perguntas é difícil acreditar em afirmações generalistas como "ouvir Enya fazer bem ao cérebro". Que cérebro, cara pálida? Ou melhor, para quais pessoas escutar Enya faz bem? Para algumas certamente, mas não para todas. Algumas pessoas se sentem bem escutando Enya ou música clássica, mas outras preferem heavy metal ou samba - e  isto "faz bem" a elas. De toda forma, é claro que existem coisas que fazem bem, mas isto não significa 1) que fazem bem a todas as pessoas do mundo o tempo todo e 2) que fazem "bem ao cérebro". Se algo faz bem, faz bem à pessoa como um todo. Por tudo, isso, da próxima vez que ler que algo "faz bem ao cérebro" tente refletir sobre o que isso realmente quer dizer. Muitas afirmações parecem dizer muito mas efetivamente não dizem nada.
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