segunda-feira, 13 de junho de 2016

Um ataque à diversidade

Muitas incertezas ainda pairam sobre o ataque empreendido pelo norte-americano Omar Mateen na boate Pulse, em Orlando, na madrugada do dia 12 de Junho, que matou pelo menos 50 pessoas e feriu outras 53, mas uma coisa é inegável: trata-se de um ataque frontal à diversidade e, especialmente, à comunidade LGBT. Muitos acreditam que se trate de um ataque terrorista ordenado pelo Estado Islâmico, mas, como aponta o jornal El País, o FBI está tratando o caso como um crime de ódio, de possível caráter homofóbico, embora não exclua outras vias de investigação. Esta hipótese de um atentado homofóbico  foi de certa forma confirmada ou pelo menos reforçada pelo próprio pai de Mateen que afirmou na mídia que o filho nutria profundo ódio pela comunidade gay. “Isso não tem nada a ver com religião”, disse o pai, que relatou um episódio recente no qual Omar teria demonstrado um grande incômodo ao ver um casal gay se beijando  no centro de Miami. Independente de fatos relativos ao passado de Mateen, a sua escolha de empreender o ataque em uma boate gay é extremamente simbólica e reveladora de sua visão de mundo - compartihada por muitas outras pessoas - e também de suas intenções.

Se Mateen possuia de fato relação com grupos terroristas como o Estado Islâmico ou se seu ato teve motivações religiosas, isto ainda está para ser confirmado ou negado, mas desde já é possível enxergar o ato empreendido por ele como um ato de profunda intolerância e desrespeito com as diferenças, especialmente com as diferenças relativas à orientação sexual. Mateen como inúmeras outras pessoas em todo o mundo, e também no Brasil, não aceitam, especialmente por motivos religiosos, que se possa ter uma sexualidade para além da considerada "normal", ou seja, a heterossexualidade. Embora alguns se utilizem do discurso médico, argumentando que a homossexualidade seria uma psicopatologia, na maioria das vezes - e mesmo por trás deste argumento médico - o entendimento é que se trata de um pecado, de uma abominação, de algo que não seria natural segundo as "leis de Deus". Cabe apontar, neste sentido, que a ideia de que a homossexualidade não é natural só faz sentido em uma perspectiva religiosa, pois, como bem aponta o historiador Yuval Noah Harari no sensacional livro Sapiens: uma breve história da humanidade, em uma perspectiva biológica, "não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros". Este argumento demolidor simplesmente coloca por terra alegações supostamente baseadas na biologia de que a homossexualidade, e mesmo a transexualidade, seriam "fenômenos" antinaturais.

Tal argumentação só é possível caso se considere natural algo que esteja "de acordo com as intenções de Deus". Só que aí o grande problema é definir quais exatamente são as intenções de Deus. E a forma encontrada por muitos religiosos é se basear nos livros sagrados que trariam, indiretamente, a voz e os ensinamentos do todo-poderoso. No caso dos cristãos, sendo o livro sagrado de referência a Bíblia, os trechos normalmente utilizados para se condenar a homossexualidade se encontram no Velho Testamento, especialmente no livro Levítico. Neste livro constam duas frases bastante diretas a respeito desta questão: "Não te deitarás com homens, como com mulheres: é uma abominação" (Levítico 18:22) e "Se um homem também se deita com homens, assim como se deita com uma mulher, ambos cometeram uma abominação: certamente serão condenados à morte; seu sangue cairá sobre eles" (Levítico 20:13). Ok, se ignorarmos o fato de que tais frases simplesmente desconsideram o sexo entre mulheres, podemos de fato identificar uma condenação explicita e direta à homossexualidade. No entanto, o mesmo livro também considera pecados ou abominações ter contato com uma mulher menstruada, cortar o cabelo e comer mariscos, dentre muitas outras coisas. E isto inevitavelmente sinaliza para a impossibilidade de se levar tudo o que está escrito lá ao pé da letra e à ferro e fogo - como dolorosamente constatou o jornalista A.J. Jacobs no período de um ano em que tentou viver seguindo todos os preceitos bíblicos. Neste sentido, se não é possível seguir literalmente tudo, qual a lógica em seguir determinados princípios e ignorar outros? Aliás, como escolher quais seguir e quais ignorar? Ademais, cabe apontar que no Novo Testamento não há qualquer referência à questão da homossexualidade. Jesus não disse absolutamente NADA sobre esse assunto - ao passo em que disse inúmeras coisas sobre o amor, a tolerância e o respeito. Não é curioso que a principal figura do cristianismo tenha simplesmente ignorado a questão da homossexualidade? E não é mais curioso ainda que inúmeras pessoas que se digam cristãs ajam de forma completamente intolerante e desrespeitosa com os homossexuais?

"Ah, mas Mateen era muçulmano", eu consigo escutar alguém dizer. "Desta forma, não se pode culpar o cristianismo pelo ataque. A culpa é da religião islâmica, cujos adeptos são terroristas". Ah, se as coisas fossem tão simples assim... em primeiro lugar não está claro se Mateen era de fato muçulmano. Mas mesmo que fosse isto não faria dele instantaneamente um terrorista. A maioria absoluta dos muçulmanos não o são. Aliás, não há no Corão nenhum condenação explícita da homossexualidade, apenas a indicação de que  um tal "povo de Lot" teria sido destruído por participar de atos homossexuais. Ainda sim, em muitos países islâmicos, como a Arábia Saudita e o Sudão, a homossexualidade é considerada crime e é punida com a morte. Em outras nações islâmicas relativamente seculares como Egipto, Tunísia e a Indonésia, há uma certa tolerância, mas ainda distante da praticada na maioria dos países "ocidentais". De toda forma, o que está claro é que não é a religião Islâmica em si ou o conjunto de seus seguidores os responsáveis por este ou aquele ataques realizados nos Estados Unidos e na Europa. A responsabilidade certamente pode ser atribuída, pelo menos em parte, aos fundamentalistas destas e de outras religiões - entendendo fundamentalistas como aquelas pessoas que reúnem, necessariamente mas não exclusivamente, estas três características (identificadas pelos sociólogos Peter Berger e Anto Zijderveld no fantástico livro Em favor da dúvida: como ter convicções sem se tornar um fanático): 1) tem dificuldade de ouvir opiniões e ideias discordantes; 2) alegam estar de posse de uma verdade irrefutável e 3) argumentam que sua verdade é a única verdade, ou seja, alegam deter o monopólio sobre a verdade. Tais pessoas, que podem ou não partir para a ação direta, como fez Mateen, não aceitam a pluralidade e a relativização que a modernidade "trouxe" ao mundo. Isto significa que possuem grande dificuldade para lidar com o fato inegável e irreversível de que existem pessoas e grupos que pensam e agem de maneiras muito diferentes da sua, seja no âmbito reigioso, comportamental e/ou moral.

A ideia de que as pessoas podem escolher ou possuir crenças e estilos de vida diferentes do seu, incomoda e mesmo enfurece certas pessoas e grupos. O fundamentalista não suporta o relativismo e a pluralidade do nosso mundo, pois deseja que todos pensem e ajam como ele. Isto porque ele não tem qualquer dúvida de que o seu caminho é o certo, especialmente porque sente não o ter escolhido mas ter sido conduzido a ele por forças divinas. Assim, enquanto o relativismo se caracteriza por colocar todas as crenças e comportamentos em dúvida ("Não há certezas", diz o relativista), para o fundamentalismo não há quaisquer dúvidas ("Eu tenho certeza", diz o fundamentalista). O fundamentalista, neste sentido, é por definição um crítico da pluralidade e da diversidade. Para ele só há uma única verdade, a dele, e todas as demais formas de ser e estar no mundo são erradas. Certamente, a maioria dos fundamentalistas não parte para a ação direta visando eliminar fisicamente os diferentes; apenas uma pequena parte, como Mateen, o fazem. Só o que não podemos ignorar é que pessoas como ele são apenas a ponta do iceberg. Toda vez que alguém diz que ser homossexual é ruim, é errado, é doentio, é pecaminoso e luta para que a população LGBT não tenha acesso a direitos elementares (que não são privilégios, cabe ressaltar), está contribuindo para a perpetuação de uma cultura de intolerância e desrespeito que vez ou outra culminará em ataques como esse. Aliás, ataques como esse também são a ponta do iceberg. Diariamente gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, trangêneros e travestis sofrem violências de todos os tipos - o Brasil, inclusive, é o campeão mundial de assassinatos da população LGBT. Portanto, acreditar que somente armas matam é de uma ingenuidade sem tamanho. Palavras também matam. Todos os dias. Aliás, a única diferença entre fundamentalistas como Mateen e outros que vemos diariamente nas redes sociais e nos comentários dos grandes portais (e também no Congresso Nacional) é que os primeiros possuem - na verdade desenvolvem - um destemor e uma ousadia que os segundos não têm, ou não tem ainda (até quando?). O que não significa que não lhes falte vontade de sair por aí atirando e matando todos os diferentes. Tais pessoas querem a todo custo acabar com a pluralidade do mundo mas, como bem disseram Berger e Zijderveld, é muito dificil - eu diria impossível - "colocar o gênio pluralizante de volta na lâmpada". O mundo é plural, não há o que se possa fazer. Matar cinquenta, mil ou cem mil pessoas não tornará o mundo menos plural. Pelo contrário, se para cada ação há uma reação, a reação a favor da diversidade será muito, e cada vez mais, potente. Assim espero.
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