quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O que nos torna humanos? Reflexões a partir da série "Humans" (SEM SPOILERS)

O que nos torna humanos? O que nos diferencia dos outros animais e o que nos diferenciaria de eventuais máquinas pensantes? Com relação aos animais, Aristóteles afirmava que o ser humano é o único "animal político", querendo com isso dizer que somente nós temos a capacidade de pensar e agir racionalmente em prol do bem comum. Já para Descartes a grande diferença é que o homem seria o único dotado de alma. Os outros animais, para o filósofo, não passariam de máquinas desalmadas e, portanto, irracionais. A dor expressa por um cachorro, por exemplo, nada mais seria do que uma espécie de defeito na máquina. Após Darwin, o entendimento sobre o que nos diferencia dos outros animais se alterou consideravelmente, pois passou-se a entender tais diferenças como sendo de grau e não mais de qualidade ou natureza. O cérebro e, como consequência, a mente humana, da mesma forma que todo o nosso corpo, seriam, nesse sentido, frutos da evolução por seleção natural. E isto significa que nossas características mais peculiares também podem ser encontradas, em alguma medida, nos outros animais - e é esta proximidade que, de alguma forma, justifica e, por outro lado, torna problemática a utilização de animais para fins científicos. Nossa linguagem, por exemplo, nos faz realmente únicos, mas isto não significa que estejamos totalmente sozinhos neste quesito. Outros animais, como cachorros, golfinhos e macacos, também possuem sistemas de comunicação - menos elaborados que o nosso, certamente, mas que lhes permitem atingir determinados fins. Da mesma forma, me parece consensual ou pelo menos majoritário entre os cientistas contemporâneos o entendimento de que outros animais possuem emoções, memórias e inteligência, embora em menor complexidade do que nos seres humanos.

No entanto, para além de tudo que nos distancia, de fato compartilhamos com todos os outros animais a "posse" um corpo biológico dotado de uma anatomia e uma fisiologia assim como de determinados sentidos que permitem sejamos afetados pelo mundo e o afetemos. Como os animais e também as plantas e os fungos, somos seres biológicos - certamente não nos reduzimos a esta biologia, mas sem ela não seríamos quem somos e não faríamos o que fazemos. Como seria, então, se criássemos máquinas inteligentes com aparência humana? No que nos diferenciaríamos de tais "criaturas" não-biológicas? A série Humans, fantástica produção inglesa lançada em 2015, traz algumas respostas para estas perguntas - mas fique tranquilo, não revelarei nada de significativo sobre a série. No mundo retratado em Humans, que se passa em uma Londres ao mesmo tempo futurista e atual, humanos e sintéticos, como são denominadas as máquinas humanizadas, convivem de forma relativamente pacífica. Isto porque os sintéticos, também chamados de synths, embora sejam capazes de realizar inúmeras atividades desempenhadas anteriormente por seres humanos - especialmente aquelas mais degradantes e perigosas -, não possuem consciência de si e do mundo. Apenas agem automaticamente a serviço do homem. Os synths não possuem autonomia; são meramente "escravos". A grande questão é que um de seus criadores decidiu ir além e acabou por criar um grupo androides conscientes. O que ele fez, em suma, foi desenvolver uma verdadeira inteligência artificial, como ainda não possuímos e talvez nunca possuiremos. Tais sintéticos tem a capacidade não somente de agir como seres humanos mas também de pensar e sentir de forma aproximada à nossa. E isto significa, então, que o cientista criou seres humanos não-biológicos? Ou não são seres humanos, apenas máquinas que simulam os comportamentos, pensamentos e sentimentos humanos? De toda forma, no que estes seres ou coisas se assemelham e no que se diferenciam de nós?

Uma primeira e mais elementar resposta para esta última pergunta é que não sendo seres biológicos, os sintéticos jamais vivenciariam muitas das coisas que fazem parte da vida cotidiana de todos os seres humanos e de muitos seres vivos. Por não possuírem um corpo biológico, eles nunca sentiriam fome e nunca precisariam se alimentar - na série, eles precisam apenas serem carregados em uma tomada. Da mesma forma, por não se alimentarem, não haveria qualquer processo de digestão e nunca precisariam defecar ou urinar. Eles também nunca sentiriam dor de barriga ou qualquer outra dor interna, pois não possuiriam órgãos - na série, somente os sintéticos conscientes sentem dor e apenas quando lesionam a pele. Eles também não precisariam e provavelmente não poderiam tomar banho ou realizar qualquer ritual de higiene - no máximo, talvez, passar um perfuminho para agradar aos humanos. Também não poderiam beber qualquer líquido e, por isso, jamais experimentariam a embriaguez - na série, uma sintética que se disfarça de humana usa uma bolsa dentro da garganta para que possa "beber" e "comer" em situações sociais; no entanto ela bebe horrores e jamais fica bêbada. Da mesma forma, dificilmente veríamos um sintético vomitando, arrotando, soluçando ou peidando, ações absolutamente cotidianas para qualquer ser humano. Além disso, um ser não-biológico não precisaria, ainda que pudesse, fazer sexo ou se masturbar e jamais ejacularia de prazer, ainda que possuísse algum fluido corporal artificial. Também não poderia engravidar e jamais teria filhos "naturais". Mas não só: por ter sido fabricado e não nascido como um bebê, um sintético não cresce, não envelhece e não morre - uma máquina certamente pode ser desligada ou danificada mas suas peças podem ser trocadas e o dano reparado, exceto talvez, em casos de perda total. E por não morrer "naturalmente", provavelmente não teria medo da morte, algo absolutamente essencial na vida humana. Enfim, não ser uma criatura biológica certamente traz alguns benefícios, mas também uma série de prejuízos. O que se ganha em durabilidade, por exemplo, se perde em humanidade. Como chamar de humano um ser que não come, não bebe, não caga, não mija, não goza, não se embriaga, não fica doente, não envelhece e não morre? Um ser como esse, pode até se parecer fisicamente conosco; pode até possuir uma inteligência superior à nossa e executar cálculos e raciocínios com muito mais rapidez; pode até dispor uma memória extraordinária e até mesmo sentir determinadas emoções. Mas ainda faltará muito para que tal criatura se torne integralmente um ser humano.
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Unknown disse...

Mas a pergunta que me fica é se um dia será possível mesmo com esses entraves aí, um ser humano sintético poder de fato ter consciência de si e ter sentimentos reais para além de sua mera expressividade.