terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Conceber a dependência química como uma doença cerebral promove injustiça social - Carl Hart

Carl Hart
No dia 17 de Fevereiro, o neurocientista norte-americano Carl Hart, professor e pesquisador da Universidade de Columbia, em Nova York, publicou na prestigiosa revista Nature um pequeno mas impactante artigo denominado Viewing addiction as a brain disease promotes social injustice, que eu traduzi e disponibilizo abaixo para os leitores do blog. Cabe apontar que Hart já tratou desta temática em seu maravilhoso livro Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas, lançado no Brasil em 2014 pela editora Zahar, mas neste pequeno texto o autor condensa suas principais ideias possibilitando que mais pessoas tenham acesso a elas. Segue a minha tradução do artigo e, desde já, peço desculpas por eventuais falhas, pois não sou tradutor profissional.

Mais de 25 anos atrás, eu comecei a estudar neurociência porque eu pensava que esta abordagem pudesse resolver o "problema das drogas". Naquele tempo, eu acreditava que a pobreza e o crime existentes na comunidade carente de recursos de onde eu vim eram o resultado direto da dependência de drogas; então eu raciocinei que se eu pudesse curar a dependência, especialmente através de manipulações neurais, eu poderia corrigir a pobreza e o crime em minha comunidade. Mas eu aprendi que enquanto a cocaína - assim como outras drogas recreacionais - altera temporariamente o funcionamento de neurônios específicos no cérebro de todos que consumem a droga, a vasta maioria dos usuários jamais se torna dependente. E em relação à porcentagem relativamente pequena de individuos que se tornam dependentes, existe uma combinação de transtornos psiquátricos e fatores socioeconômicos em uma significativa parcela dos casos. Até o momento, não foi identificado nenhum substrato biológico  que permita diferenciar pessoas não-dependendes de dependentes.

A noção de que a dependência química é um problema cerebral é cativante porém vazia: praticamente não há dados relativos a seres humanos indicando que a dependência é uma doença do cérebro no sentido em que, por exemplo, a Doença de Huntington e o Parkinson são doenças cerebrais. Com estas doenças, é possível olhar para o cérebro dos indivíduos afetados e fazer uma predição acurada a respeito da enfermidade envolvida e de seus sintomas.

Ainda não estamos nem perto de sermos capazes de distinguir os cérebros de pessoas dependentes daquelas que não o são. Apesar disso, a perspectiva do "cérebro doente" tem influenciado desmedidamente o financiamento e a direção das pesquisas, assim como a forma como as drogas são encaradas na sociedade. Por exemplo, a recente iniciativa multimilionária Adolescent Brain Cognitive Development longitudinal study objetiva, em primeiro lugar, coletar dados de neuroimagem para melhor entender o uso e a dependência de drogas entre adolescentes. Este estudo recolhe informação genética e mede o uso de drogas e o rendimento acadêmico, mas carece de considerações cuidadosas sobre a importância dos fatores sociais. Espantosamente, nunca houve um esforço tão ambicioso de financiamento  focado nos determinantes ou nas consequências psicossociais (por exemplo, emprego, status, discriminação racial, características da vizinhança, policiamento) do uso ou da dependência de drogas.

Esta situação contribui para uma política de drogas irrealista, custosa e prejudicial. Se o problema real com a dependência de drogas é, por exemplo, a interação entre a droga e o cérebro do indivíduo, então a solução para este problema está em uma de duas  abordagens possíveis. Ou se remove a droga da sociedade através de políticas e da aplicação da lei (por exemplo, as sociedades livres de drogas) ou se foca exclusivamente no cérebro "dependente" dos individuos como sendo o problema. Em ambos os casos, não há a necessidade nem o interesse em se entender o papel dos fatores socioeconômicos na manutenção do uso ou na mediação da dependência das drogas. 

O efeito prejudicial da aplicação da lei como medida primária para lidar com o uso de drogas é bem documentado. Milhões são presos todos os anos por posse de drogas e a prática abominável do racismo floresce na aplicação de tais políticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a posse de maconha é responsável por quase metade das 1,5 milhões de prisões anuais relacionadas às drogas, e os negros tem quatro vezes mais chances de serem presos por posse de maconha do que os brancos, ainda que a taxa de uso da droga seja similar nos dois grupos.

Uma suposição enganadora relacionada à teoria da doença cerebral é que qualquer uso de certas drogas é considerado patológico, mesmo o uso não problemático e recreacional que caracteriza a experiência da esmagadora maioria dos usuários de drogas. Por exemplo, em uma popular campanha anti-drogas dos Estados Unidos, está implícito que apenas uma dose de metanfetamina seria suficiente para causar um dano irreversível.

Nos anos 80, o uso de crack foi culpabilizado por tudo, desde a violência extrema até os altos índices de desemprego, a morte prematura e o abandono infantil. De forma ainda mais assustadora, foi dito que a dependência de drogas se instalava após somente um episódio de uso. Especialistas em drogas, inclinados às neurociências, reforçavam este argumento. "O melhor meio de reduzir a demanda", afirmou o professor de psiquiatria da Universidade de Yale Frank Gawin para a Newsweek (16 de junho/1986) "seria fazer com que Deus redesenhasse o cérebro humano mudando a forma como a cocaína reage com certos neurônios".

Documentário 13ª emenda











As "neuro" observações feitas sobre as drogas, em geral carentes de embasamento, foram perniciosas: elas ajudaram a moldar um ambiente no qual se disseminou o objetivo  injustificado e irrealista de eliminar certos tipos de uso de drogas a qualquer custo dos cidadãos marginalizados. Em 1986, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma legislação que estabelecia penalidades que eram literalmente 100 vezes mais severas para o crack do que para violações relacionadas à cocaína em pó. Mais de 80% dos condenados por delitos relativos ao crack eram negros, apesar do fato da maioria dos usuários da droga serem brancos. Atualmente, muitos consideram as leis de crack/cocaína repugnantes porque elas exageram os efeitos prejudicias do crack e reforçam uma prática de discriminação racial, mas poucos examinam criticamente o papel desempenhado pela comunidade científica na sustentação das suposições subjascentes a estas leis.

A comunidade científica, por sua vez, praticamente ignora a vergonhosa discriminação racial que ocorre na aplicação da lei de drogas. Os próprios pesquisadores são em sua esmagadora maioria brancos e não tem de viver com as consequências de suas ações. Eu não tenho esse luxo. Toda vez que eu olho para os rostos dos meus filhos ou regresso ao local onde vivi minha juventude, eu sou forçado a encarar a dizimação resultante da discriminação racial, que é tão desenfreada na aplicação da lei de drogas e que é incitada por argumentos escassamente fundamentados em evidências científicas.

Nós não podemos mais permitir que os neuroexageros determinem nossas prioridades e direções no financiamento das pesquisas sobre drogas e moldem nossas opiniões e políticas relativas a esta questão. Os riscos são muito altos e o custo humano é incalculável.
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