sexta-feira, 21 de julho de 2017

Trans-formações: uma resenha do livro "Vidas trans"

A temática da transexualidade ou da transgeneridade tem recebido grande destaque nos meios de comunicação e também no mundo acadêmico. Só na rede Globo, por exemplo, o tema está sendo tratado na novela A força do querer, que possui um personagem transhomem, e foi retratado no início deste ano na série documental Quem sou eu? do programa Fantástico - o canal GNT, ligado à Globosat, também possui um programa especialmente dedicado ao tema, o Liberdade de gênero. Já no meio acadêmico, é possível observar que nunca tantas pesquisas, artigos, dissertações e teses foram feitas sobre o tema. Certamente isto tem um lado positivo: trazer à tona esta temática pode fazer com que gradualmente as pessoas trans, ainda fortemente invisibilizadas, marginalizadas e alvo de grande violência, sejam reconhecidas e respeitadas pela sociedade. No entanto, esta visibilidade possui um lado negativo: em grande parte das vezes as pessoas trans são meros "objetos" e não "sujeitos" da própria narrativa. Tais pessoas em geral são "personagens" e não "protagonistas" dos programas de TV e das pesquisas acadêmicas. Quase sempre os/as diretores/as e roteiristas de tais programas, os atores/atrizes que interpretam personagens trans e ainda os/as pesquisadores/as que estudam o "fenômeno trans" são pessoas cis, isto é, pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. No caso da novela, por exemplo, quem interpreta o personagem trans é uma atriz cis, o mesmo ocorrendo em quase todas as novelas, filmes e séries que retratam pessoas trans - duas honrosas exceções ficam por conta das séries Orange is the new black, que possui uma personagem trans interpretada pela atriz Laverne Cox, e Sense8, dirigida pelas irmãs trans Lilly e Lana Wachowski e que possui em seu elenco a talentosa atriz Jamie Clayton, também trans. 

Tendo isto em vista, é com grande satisfação que me deparei com o livro "Vidas trans: a coragem de existir", recém-lançado pela editora Astral Cultural e escrito 100% por pessoas trans. Prefaciado pela famosa cartunista Laerte Coutinho (que foi recentemente retratada no documentário Laerte-se, disponível no Netflix) e também pela psicóloga, pesquisadora e blogueira Jaqueline Gomes de Jesus, autora dos livros Transfeminismo: teorias e práticas (2014) e Homofobia: identificar e prevenir (2015), "Vidas trans" traz quatro narrativas em primeira pessoa escritas por célebres pessoas trans brasileiras: 1) a travesti Amara Moira, que é doutoranda em teoria literária pela Unicamp, autora do livro E se eu fosse puta (2016) e colunista da Mídia Ninja em assuntos que envolvem gênero e direitos dos LGBTs e das profissionais do sexo; 2) o transhomem João W. Nery, que é psicólogo, autor da magnífica autobiografia Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois (2011) e o primeiro homem trans a ser operado no Brasil - em 1977, em plena ditadura militar (além disso João Nery dá nome ao Projeto de Lei de Identidade de Gênero, proposto pelos deputados federais Jean Wyllys e Érica Kokay e ainda em tramitação no Congresso Nacional); 3) a travesti Márcia Rocha, que é empresária, advogada integrante da Comissão de Diversidade Sexual da OAB, representante do Brasil no Comitê de Direitos Sexuais da World Association for Sexual Health (WAS) e uma das idealizadoras da Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat) e do projeto Transempregos (além disso Márcia Rocha foi a primeira advogada travesti a ter registrado o nome social na carteira da OAB) e 4) o transhomem T. Brant (antes Tereza Brant e agora Tarso Brant), que é ator e modelo, serviu de inspiração para o personagem trans de A força do querer e agora compõe o elenco da novela (além disso, Tarso Brant é também youtuber, sendo responsável pelo canal/blog Ela ou ele)  

Amara Moira, João W. Nery e T. Brant
No livro, cada uma destas pessoas conta a sua própria história. São narrativas de dor, mas também de crescimento e superação e que expõem muitas das dificuldades vivenciadas pelas pessoas trans no Brasil. Estas histórias, embora tenham elementos bastante peculiares, trazem alguns pontos em comum: a  falta de identificação, desde criança, com o gênero atribuído ao nascimento e, pelo contrário, uma grande identificação com as vestimentas, características e pessoas do outro gênero; grande dificuldade para "sair do armário" e agir publicamente conforme o gênero que se identifica (no livro, há vários relatos de "vida dupla", na qual em público a pessoa atuava, literalmente atuava, de acordo com o gênero "estabelecido" e somente na vida privada agia livremente segundo o gênero "sentido"); dificuldades relacionadas à rejeição da família, dos amigos e da sociedade em geral; a importância da internet e das redes sociais para a descoberta e interação com outras pessoas trans; a insatisfação com o próprio corpo, o processo de hormonização, as cirurgias, etc. Os relatos também tocam em uma série de entraves bastante comuns à população trans, como a dificuldade em alterar legalmente o nome civil, que gera inúmeros constrangimentos e violências cotidianas, a dificuldade em conseguir emprego, que leva muitas pessoas trans, especialmente as mulheres, à prostituição (o projeto Transempregos atua justamente nesta questão), e, finalmente, dificuldades relacionadas ao processo de transformação corporal. Enfim, as tocantes narrativas presentes neste livro nos permitem adentrar momentaneamente na vida destes indivíduos e compreender os seus pontos de vista, suas dores e suas alegrias. E com isso podemos exercitar nossa empatia e entender ou relembrar que existem inúmeras formas de viver o gênero (e a sexualidade) para além daquelas que a sociedade julga "normal".
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