terça-feira, 12 de agosto de 2014

Sobre comediantes, cérebros e depressões

Nas últimas semanas, dois atores que se tornaram famosos pela interpretação de personagens cômicos faleceram de forma trágica: no dia 30 de julho foi encontrado morto em seu apartamento o ator Fausto Fanti da trupe de humor Hermes e Renato e ontem foi a vez do grande ator e comediante norte-americano Robin Willians. Os dois foram diagnosticados com depressão (Robin, além disso, era alcoolista) e suspeita-se de que ambos se suicidaram. E isto levou muitas pessoas, inclusive associações médicas, a afirmarem que caso eles tivessem se tratado adequadamente com um psiquiatra, sendo corretamente medicados, provavelmente tais mortes não teriam ocorrido. O irmão de Fausto chegou a dizer em uma entrevista que Fausto "estava em um processo mental quase obsessivo e ele não estava tomando nenhum remédio. A gente achava que não era tão sério e ele era resistente a isso". Já Robin Willians passou por diversos tratamentos no decorrer de sua vida, sendo internado diversas vezes em função do alcoolismo. Será que se tivessem sido corretamente medicados suas histórias teriam sido diferentes? Difícil saber, afinal na vida não há "e se" - o passado foi o que foi e não o que poderia ter sido - mas investiguemos.

O que é depressão? Os psiquiatras biológicos contemporâneos tendem a defini-la como um transtorno (ou seja, uma doença) cerebral no qual predomina o humor depressivo, dentre outros sintomas. Segundo o DSM-IV (agora substituído pelo DSM-5, publicado no ano passado), para uma pessoa ser diagnosticada com o Depressão maior era necessário que cinco ou mais dos seguintes sintomas estivessem presentes por pelo menos duas semanas: estado deprimido: sentir-se deprimido a maior parte do tempo; anedonia: interesse diminuído ou perda de prazer para realizar as atividades de rotina; sensação de inutilidade ou culpa excessiva; dificuldade de concentração: habilidade freqüentemente diminuída para pensar e concentrar-se; fadiga ou perda de energia; distúrbios do sono: insônia ou hipersônia praticamente diárias; problemas psicomotores: agitação ou retardo psicomotor; perda ou ganho significativo de peso, na ausência de regime alimentar; idéias recorrentes de morte ou suicídio. Caso a pessoa estivesse em processo de luto, o manual apontava que, nesse caso, o diagnóstico não poderia ser feito - o que era um tanto sensato, afinal, como diagnosticar com depressão alguém que sofre natural e legitimamente em função da perda de uma pessoa querida? No DSM-5 tal ressalva foi eliminada. Agora pessoas enlutadas podem ser diagnosticadas depressivas. 

De toda forma, não tenho dúvidas de que a depressão é um grande problema na atualidade e nem de que as medicações podem auxiliar imensamente no tratamento de pessoas deprimidas - tanto é que não me furto de encaminhar para o psiquiatra pacientes severamente deprimidos. Mas não concordo de forma alguma com a ideia de que a depressão é um problema cerebral. Na minha visão e de diversos autores, a depressão é um problema da pessoa como um todo, não somente de seu cérebro. Obviamente a tristeza e a depressão se refletem no cérebro: se observarmos em aparelhos de ressonância magnética a atividade cerebral de pessoas severamente deprimidas provavelmente veremos uma maior ou uma menor ativação de determinadas áreas. Só que isto não significa que são tais alterações que causam ou determinam a depressão. Na verdade, o contrário é bem mais plausível: que tais alterações sejam causadas pela depressão. Mais correto, no entanto, é dizer que existem correlatos neurais da depressão o que significa dizer que a depressão possui "marcas" no cérebro.

Em seu livro Out of our heads (que já tratei aqui), o filósofo Alva Noe diz o seguinte sobre a ideia de que a depressão é uma doença cerebral: "Em um sentido, isto é obviamente correto. Existem assinaturas neurais da depressão. Além disso, a ação direta sobre o cérebro - na forma de uma terapia medicamentosa - pode influenciar a depressão. Mas em outro sentido, isto é obviamente incorreto. É simplesmente impossível entender porque as pessoas ficam deprimidas - ou porque o indivíduo está deprimido aqui e agora - somente em termos neurais. A depressão ocorre em pessoas reais com histórias de vida reais face a eventos da vida real. O dogma de que a depressão é uma doença do cérebro serve aos interesses da indústria farmacêutica, sem dúvida; também serve para desistigmatizar a luta contra a depressão, o que é uma coisa boa. Mas é falso". Para Noe, a depressão é uma condição (ou um transtorno) da pessoa como um todo, não somente de seu cérebro. Além disso, a depressão não seria causada simplesmente por uma falha nas conexões cerebrais mas como uma resposta a situações reais e concretas da vida.

Sobre isso, algumas pessoas podem questionar: "ah, mas existem sujeitos que ficam deprimidos 'do nada'!" Será mesmo? Em minha prática clínica nunca encontrei pessoas deprimidas sem nenhum motivo. Algumas vezes, é isso que a pessoa diz inicialmente, mas, à medida que adentramos em sua vida subjetiva, sempre encontramos razões para sua tristeza. Pode ser que ela não tenha passado por nenhuma perda real (de uma pessoa ou de um emprego, por exemplo), mas provavelmente passou por alguma perda simbólica ou então se encontra em dúvida com relação aos seus caminhos ou ainda possui uma visão extremamente negativa da vida e das relações - visão esta anterior à crise depressiva. "Ah, mas esta é somente sua experiência clínica. Você não pode generalizar! Você tem dados?". Infelizmente não tenho dados para "provar" meu argumento (como também cobrou de mim o neurocientista N. em outro post). Além disso, não tenho imagens cerebrais ou gráficos coloridos, que certamente convenceriam mais as pessoas - embora muitas vezes não digam nada de relevante. De toda forma, meu ponto já deve ter ficado claro: a depressão não é um problema cerebral. É um problema que afeta o cérebro, certamente, mas não é causado simplesmente por alterações neuronais (o que não descarto totalmente) mas, principalmente, como resposta a perdas reais e simbólicas na vida concreta da pessoa.

E é neste sentido que penso que as medicações podem ajudar sim e muito. Mesmo não sendo um problema cerebral, a depressão se reflete no cérebro - e intervenções medicamentosas podem ser extremamente úteis e necessárias para a pessoa sair de um estado de apatia e desânimo e voltar a encarar os desafios da vida. Mas medicações não curam ou extirpam a depressão da pessoa pois esta se relaciona não simplesmente a alterações em seu cérebro mas também à sua maneira de ser e estar no mundo. Isto não significa - é bom deixar claro - que a depressão seja culpa da pessoa ou então que seja fraqueza ou falta de força de vontade. De forma alguma! Isto significa que a tristeza (e seu excesso, a depressão) possui forte relação com a forma pela qual a pessoa vê e encara a vida e também com o mundo ao seu redor. Apesar de desconfiar imensamente das estatísticas sobre depressão disseminadas pelos psiquiatras (que tendem a refletir menos a suposta realidade endêmica do problema e muito mais a ampliação e a banalização do diagnóstico moderno de depressão), acredito que o mundo moderno  - que Bauman chamaria de "líquido" - contribui significativamente para a constituição dos sujeitos depressivos (a ideia de neuroplasticidade, tão em voga no meio neurocientífico atualmente, não é justamente de que o cérebro é moldado no/pelo mundo?). E é neste sentido que penso que embora as medicações possam contribuir imensamente na diminuição dos sintomas depressivos, o buraco neste e em tantos outros casos, é muito mais embaixo. Simplesmente não dá pra dizer que caso Fausto Fanti e Robin Willians tivessem sido corretamente medicados, suas histórias e seus desfechos seriam outros. Talvez sim, talvez não. Jamais saberemos. O que sei é que viver e encarar os desafios da vida, definitivamente, não é nada fácil. Pra ninguém.
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